O fenómeno do ghosting – o comportamento de uma pessoa que interrompe, de forma súbita e sem qualquer justificação, toda a comunicação com outra – tem-se tornado uma forma cada vez mais comum de terminar vínculos nas relações afetivas contemporâneas, especialmente no contexto das redes sociais e dating apps. Apesar de parecer recente, trata-se de uma expressão contemporânea de dinâmicas subjectivas profundas e recorrentes nas estruturas psíquicas. Saibamos mais…

Sintoma de uma ‘Cultura Líquida’

A sociedade actual, marcada pelo consumo imediato e pela rápida prescindibilidade dos vínculos, oferece terreno fértil para comportamentos como o ghostingZygmunt Bauman (2003) descreveu as relações contemporâneas como “líquidas”, ou seja, frágeis, fugidias e facilmente descartáveis. Neste contexto, o ghosting surge como sintoma de um coletivo que prioriza o prazer imediato, e evita o desconforto da frustração, do conflito ou a dor do Outro, e a inevitável complexidade dos laços (sabe mais aqui).

Vivemos na era de uma crescente dificuldade em sustentar a alteridade (i.e., reconhecer e respeitar o Outro como diferente de si, com a sua própria identidade, valores, sentimentos, visão do mundo e lugar na relação), em que o narcisismo é exacerbado e os demais são frequentemente tratados como objecto de gozo – algo que pode ser descartado assim que deixa de satisfazer. 

A facilidade do desaparecimento, possibilitada pelas tecnologias digitais, substitui o enfrentar psíquico da perda e da alteridade por uma evasão silenciosa. Contudo, uma abordagem psicanalítica permite ir além do aspecto sociocultural para interrogar: o que leva alguém a escolher o desaparecimento como forma de romper um laço? E mais ainda: por que quem sofre o ghosting experimenta tamanha angústia, muitas vezes desproporcional à duração do vínculo?

Como é a pessoa que pratica o Ghosting?

Tipicamente, quem pratica ghosting é uma pessoa que tenta…

  • (i) …proteger-se de eventuais experiências de rejeição, desamparo ou inadequação – para evitar sentir-se rejeitada e/ou insuficiente, antecipa-se através do afastamento (rejeita para não ser rejeitada). Estes medos e inseguranças poderão estar associados a feridas internas por elaborar, ao desenvolvimento de determinados estilos de vinculação (nomeadamente, um estilo de vinculação evitante), e/ou a experiências traumáticas ao longo do desenvolvimento;  
  • (ii) …evitar lidar com a alteridade (com o facto de que o outro também deseja, sofre, questiona…) – assim, o ghosting funciona como uma defesa contra o laço: não é apenas um ato de fuga, mas uma recusa do inconsciente em lidar com a complexidade dos vínculos e com o reconhecimento do Outro como sujeito de desejo;
  • (iii) …evitar confrontar a culpa, ou o mal-estar, de frustrar e fazer sofrer a outra pessoa;
  • (iv) …manter uma autoimagem idealizada – o Eu Ideal -, levando-a a escolher o silêncio como forma de se preservar do confronto ético e afectivo, evitando assim o julgamento externo e a culpa interna. Ao optar pelo desaparecimento, a pessoa muitas vezes escolhe preservar a sua imagem ideal – evitar ser “a vilã”, a “culpada” – mesmo que, paradoxalmente, acabe por exercer violência simbólica sobre o Outro. Neste sentido, o ghosting é também um reflexo de uma fragilidade narcísica, onde a pessoa prefere apagar o Outro a confrontar-se com o fracasso da imagem idealizada de si mesma.

Impacto do Ghosting na vítima

Para quem sofre o ghosting, a angústia vivida muitas vezes toca camadas profundas do psiquismo.

  • (i) Com a retirada radical da linguagem, o silêncio torna-se uma violência. A ausência de explicação impossibilita o processo de simbolização e de elaboração do luto. A pessoa permanece presa a uma cena sem narrativa, a uma experiência de perda sem possibilidade de sentido, o que pode desencadear angústia, culpa e sentimentos de desvalorização; 
  • (ii) Além disso, o desaparecimento abrupto pode reactivar vivências infantis de abandono, exclusão ou ausência de resposta por parte do outro primordial – especialmente a mãe, ou figura cuidadora substituta.

Em consultório, é comum observar-se que a dor do ghosting ultrapassa o “sentido lógico” da situação. O que se sofre não é só a ausência do outro, mas o colapso do sentido – a falta de encerramento (ou ‘closure’), a última conversa. 

Então afinal, como se processa uma perda que nunca foi oficialmente reconhecida? Vejamos algumas estratégias concretas e cuidados emocionais para lidar com esta experiência…

1. Reconhecer a dor como legítima:

Muitas pessoas tentam minimizar o impacto do ghosting, racionalizando com frases como “foi só uma conversa”, “não era nada sério”, ou “talvez seja melhor assim”. Contudo, o cérebro e o coração nem sempre se alinham devidamente. A ausência de ‘closure’ pode ser vivida como um microtrauma emocional, sobretudo quando existe expectativa ou envolvimento afectivo. Permite-te sentir tristeza, raiva, confusão ou frustração. Validares a tua dor é o primeiro passo para curá-la.

2. Evita personalizar o desaparecimento:

É comum que quem sofra de ghosting se questione obsessivamente: “O que é que fiz de errado?” ou “Será que fui insuficiente?”. Esta auto-investigação, embora natural, tende a ser injusta. Na maioria dos casos, o ghosting diz mais sobre as dificuldades emocionais ou imaturidade do outro do que sobre ti. Lembra-te: o silêncio do outro não define o teu valor.

3. Resistir à tentação de reabrir a ferida:

Pode ser tentador voltar a enviar uma mensagem, procurar nas redes sociais ou tentar “obrigar” o outro a dar-te uma resposta. Embora compreensível, esta insistência raramente traz alívio. Em vez disso, pode prolongar o sofrimento e aumentar o sentimento de impotência. Se alguém escolheu desaparecer, dá-lhe espaço – mas, acima de tudo, proteje o TEU próprio espaço emocional.

4. Autocuidados! Sempre!

Após uma experiência de ghosting, é frequente sentirmo-nos em baixo, inseguros/as ou com dúvidas sobre a nossa capacidade de atrair e manter relações. Neste momento, é essencial reconectarmo-nos conosco mesmos/as, com as nossas rotinas, afectos e prazeres: (i) fala com amigos de confiança, ou com o teu terapeuta; (ii) inviste em actividades que te dão prazer; (iii) investe nos teus autocuidados; (iv) evita idealizar quem desapareceu. Voltares-te para ti mesmo/a é mais reparador do que tentares compreender o incompreensível.

5. Refletir sobre padrões relacionais:

ghosting pode ser uma oportunidade para pensares sobre os teus próprios padrões relacionais: que tipo de pessoas tendes a acomodar na vida relacional? Apressas-te a criar expectativas? Sentes necessidade de validação constante? Toleras bem a diferença? Toleras bem a ambiguidade nas relações?

Esta reflexão não deve servir para te culpares, mas para te conheceres melhor. Se sentires que esta e outras situações afectam a tua autoimagem, ou que se repetem com frequência, procurar acompanhamento psicológico pode ser uma ajuda preciosa – a CresSendo está cá para isso. Conheceres-te a ti mesmo/a é a melhor forma de te protegeres sem te fechares ao amor.

6. Restaurar a confiança nas relações:

O impacto do ghosting pode gerar medo de confiar novamente nas pessoas. E sim, as pessoas são impenetráveis na sua consciência (não podemos manipulá-las desde dentro, e forçá-las ao afeto por nós), e imprevisíveis (à medida que as suas circunstâncias vão mudando, partes do seu funcionamento mudam também, atualizando-se necessidades e desejos). Por isso, no que toca à confiança, o mais importante é aprendermos a confiar em nós mesmos/as, e na nossa capacidade de resiliência: sermos a nossa própria rede de amparo no caso de uma eventual queda. Mas lembremo-nos: nem todas as pessoas vão desaparecer. Há quem saiba estar, comunicar, partir com respeito e criar vínculos com honestidade. O silêncio de alguém não pode ser mais alto do que a sua vontade de ser bem tratado/a.

ghosting é um fenómeno doloroso, sim, mas não precisa de te definir o valor ou o teu sentido de carácter. Lidar com a ausência não é esquecer: é aprender a seguir com o que ficou – e transformar esse silêncio numa escuta mais atenta de ti mesmo/a. Talvez não tenhas tido uma despedida justa. Mas ainda te podes dar a ti o que o outro não deu: clareza, cuidado e ‘closure‘. 

Sabe mais em consultório.
Aqui para ti. 

Com estima,
Carlos Marinho

Partilhar a publicação:
Scroll to Top